A Inteligência Artificial deixou de ser uma promessa distante. É, hoje, uma força omnipresente e invisível em Portugal. É a ferramenta que perscruta os nossos diagnósticos médicos, a assistente que filtra as nossas candidaturas de emprego e, cada vez mais, a sombra que ousa escrever os nossos textos. O seu potencial económico é vertiginoso: acena-se com um impulso de 18 a 22 mil milhões de euros no PIB português, uma revolução de produtividade que atrai investimentos e promete catapultar o país
para a modernidade.
Humanos em atualização: vozes locais sobre a era da Inteligência Artificial


Contudo, por detrás dos números e da eficiência asséptica, instala-se um debate profundo e urgente sobre o que arriscamos perder. A mesma tecnologia que promete otimizar a economia ameaça, segundo um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, 28,8% dos empregos em Portugal. E, mais fundo do que o mercado de trabalho, a IA desafia a própria essência da nossa criatividade, a integridade da nossa informação e a soberania da nossa democracia.
Esta é a crónica de um país em plena encruzilhada, contada pelas vozes que estão na linha da frente desta transformação silenciosa.
O jornalismo fácil e preguiçoso Em nenhuma área o debate é tão fraturante como na comunicação
social. A IA generativa oferece uma eficiência tentadora: resumir acontecimentos, gerar artigos básicos, otimizar títulos para clickbate. No entanto, esta “paulatina entrada nas redações” acontece num ecossistema já moribundo, estrangulado pela quebra de receitas de publicidade e pela migração do público para as redes sociais. A tecnologia que pode ajudar a verificar factos é a mesma que produz deepfakes ultrarrealistas e exércitos de bots para distorcer a opinião pública. O jornalismo é forçado a olhar-se ao espelho e perguntar: o que resta quando a produção de texto é automatizada?
“É necessário a todo o custo evitar o jornalismo ‘preguiçoso”


Para João Fernando Velez Vinagre, jornalista e profissional de comunicação com uma longa carreira, a resposta reside naquilo que a máquina não pode simular: a responsabilidade e a humanidade. A sua análise é um alerta cirúrgico contra a rendição à eficiência.
“O jornalismo em particular e a comunicação social de uma forma mais lata têm a obrigação – não só em termos informativos como de cariz moral – de facultar aos seus públicos todas as ferramentas informativas sobre a Inteligência Artificial, o que ela significa, as suas vantagens e desvantagens. Naturalmente que caberá depois à consciência crítica das comunidades fazer opções em relação à
utilização da IA.
Numa primeira análise direi que o fact-checking é fundamental para desmontar as redes de desinformação. Ainda assim, o crescimento exponencial dessas redes aumenta também de forma significativa a missão dos jornalistas em atuarem como formadores de opinião, no
sentido de educar as comunidades para os perigos que advêm das notícias falsas.
A paulatina entrada da IA nas redações é já uma realidade indesmentível e diria que até incontornável. Perante esta evidência, é necessário a todo o custo evitar o jornalismo ‘preguiçoso’, que se
limita a veicular informação sem a checar convenientemente, um perigo acrescido pelo facto de os média competirem ferozmente entre si para serem os primeiros a divulgar determinada notícia.
Pegando na célebre frase ‘jornalismo com gente dentro’, antevejo muito difícil – para não dizer impossível – a Inteligência Artificial alcançar o grau de empatia, humanismo e saber narrar histórias que
o ser humano está habilitado a fazer. Pego no exemplo recente em que um canal televisivo recorreu a comentadores virtuais… Foi um exercício no mínimo estranho, em que não há empatia nem comunicação, mas tão somente o debitar de informação por dois avatares.
Estamos sem dúvida a assistir a uma perigosa deriva económica na comunicação social em que a substituição paulatina dos jornalistas por modelos de IA provoca, naturalmente, uma poupança na massa
salarial. Julgo que nunca a expressão “o barato muitas vezes sai caro” fez tanto sentido como no caso em apreço.
Representa simultaneamente um perigo e uma oportunidade. Caberá ao jornalista, com o seu sentido ético, crítico e prático, separar o trigo do joio e aproveitar da melhor forma as oportunidades que, pela positiva, a IA transporta consigo.”
Educar para o Pensamento Crítico
Se os profissionais de hoje se adaptam, como preparamos a próxima geração? A IA invadiu as universidades portuguesas. Já não é uma questão de “se” os alunos usam o ChatGPT, mas
“como”. O pânico inicial da fraude académica está a dar lugar a uma profunda reflexão pedagógica. Instituições como o IST ou o INESC TEC produzem investigação de ponta, mas na sala de aula, o
desafio é redefinir o próprio conceito de conhecimento. A memorização tornou-se obsoleta; a nova competência é a curadoria, a capacidade de fazer a pergunta certa e de validar criticamente a resposta da máquina.
“Reconhecer que a inteligência artificial não é apenas uma ferramenta, mas um fenómeno que está a reconfigurar a comunicação”


Falámos com Adriana Mello, professora de Jornalismo com um percurso académico que cruza a Comunicação com as Humanidades. Para a docente, a adaptação é “incontornável e, ao mesmo tempo, uma oportunidade”. A solução, defende, não é proibir, mas sim orientar e reforçar o pilar humano:
“O ensino universitário não pode ficar alheio ao modo como estas tecnologias estão a transformar a prática profissional e a própria relação dos estudantes com a produção e o consumo de
informação. O primeiro passo é reconhecer que a inteligência artificial não é apenas uma ferramenta, mas um fenómeno que está a reconfigurar a comunicação. A IA implica uma remodelação, não tanto no sentido de abandonar os fundamentos clássicos da formação jornalística, mas de os recontextualizar. O rigor, a verificação de factos, a capacidade crítica e a ética profissional tornam-se ainda mais essenciais.
Quanto ao papel dos docentes, julgo que não podemos adoptar uma postura de rejeição ou de mero controlo face ao uso da inteligência artificial pelos estudantes. É inevitável que eles explorem estas ferramentas, dentro e fora da sala de aula. O nosso papel é orientar, mostrar limites, riscos e potentialidades. Devemos criar exercícios que permitam distinguir a produção automática da
produção reflexiva, discutir a autoria, a originalidade e a responsabilidade, e, sobretudo, incentivar os alunos a questionar o que a inteligência artificial lhes devolve.
Julgo que os docentes devem cultivar uma atitude crítica e aberta, ajudando os estudantes a integrar a inteligência artificial como apoio, mas nunca como substituto do pensamento crítico e da responsabilidade jornalística.”
“Amália”: A Aposta Portuguesa na Soberania Digital


Perante um cenário de disrupção, a grande aposta estratégica de Portugal chama-se “Amália”. Lançado oficialmente a 1 de outubro de 2025, este é o primeiro Modelo de Linguagem em Larga Escala (LLM) focado no português europeu, nas suas subtilezas culturais e na sua história. Numa era em que os gigantes tecnológicos americanos dominam a informação, o Amália é apresentado como uma declaração de independência e soberania digital.
Com um investimento de 5,5 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o projeto é liderado por um consórcio de excelência que junta 60 investigadores de instituições como o NOVA LINCS, o Instituto de Telecomunicações e o Instituto Superior Técnico. O seu “cérebro” foi alimentado pelo vasto acervo do Arquivo.pt, garantindo um conhecimento profundo da realidade portuguesa. O objetivo é claro: criar uma ferramenta fiável para setores estratégicos como a Administração Pública e a saúde,
mantendo os dados nacionais em território nacional.
Os benefícios da Inteligência artificial no campo da acessibilidade Enquanto o Estado investe milhões no “Amália”, são as instituições no terreno que pensam na sua aplicação prática e no seu hardware
humano. A Administração Pública, através da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), já explora a IA para otimizar serviços, e as bibliotecas públicas estão na linha da frente desta modernização.
“Os assistentes virtuais são fundamentais para suprir as necessidades dos utilizadores com deficiência visual ou auditiva”


Tânia Rico, coordenadora da Biblioteca Municipal de Elvas, vê uma revolução silenciosa na forma como se acede à informação, sublinhando o potencial inclusivo da tecnologia. Para a coordenadora, a otimização de processos internos não afasta as pessoas; pelo contrário, reforça a importância do pilar humano na
validação final:
“A informatização de todo o processo relativo ao utilizador já é há muito uma realidade nas bibliotecas, [o que] permite que essa informação possa ser utilizada pela IA para sugerir conteúdos para leitura e participação em eventos. A implementação de chatbots avançados e assistentes virtuais também serão fundamentais para uma mais fácil interação com os serviços da Biblioteca.
As tarefas de âmbito administrativo, catalogação ou de arquivo são tão importantes como a programação cultural. Todas estas vertentes podem ser otimizadas com a IA. No âmbito da catalogação pode melhorar a extração de metadados, estabelecer de modo intuitivo relações entre os registos bibliográficos, e
classificar automaticamente os documentos.
Os assistentes virtuais são fundamentais para suprir as necessidades dos utilizadores com deficiência visual ou auditiva. A IA pode ser utilizada para este público para criar descrições automáticas de imagens ou transcrição de conteúdos audiovisuais. Deste modo o acesso à informação torna-se mais inclusivo.
A formação contínua dos profissionais da informação no âmbito destas competências digitais é essencial. (…) Nenhuma máquina possui ainda a capacidade de ter um pensamento crítico, ética e a habilidade para resolver problemas complexos e o ser humano profissional habilitado continua a ser o pilar para a avaliação e validação das informações geradas por IA.
Sem dúvida os benefícios superam os riscos. Há sempre uma natural relutância na sociedade face às mudanças tecnológicas, mas a História prova que sempre foram positivas. O campo em que IA mais me fascina (…) é no campo da Medicina.”
Quando a IA Entra no Jogo Político


Mas se a IA pode ser ‘domesticada’ nas profissões, o seu impacto mais selvagem ameaça a própria democracia. A tecnologia capaz de gerar deepfakes e micro-direcionar propaganda a níveis psicográficos, como no escândalo da Cambridge Analytica, transforma o debate político num campo minado.
Para analisar os riscos da tecnologia no jogo democrático, ouvimos o vereador da Câmara Municipal de Elvas, Cláudio Monteiro, que traz uma perspetiva focada na ética. O político elvense traça um paralelo com o advento da internet – “um mecanismo que veio para ficar” – onde a chave é “extrair as suas potencialidades e os seus perigos e, posteriormente, sensibilizar os utilizadores”.
O problema, para o autarca, é que a política não está a acompanhar a velocidade da tecnologia. “Ainda há um longo caminho a percorrer no que toca à regulamentação do uso de inteligência artificial em campanhas eleitorais”, nota.
Quando confrontado com a ideia de que os partidos podem simplesmente “cair em tentação” de usar estas ferramentas de forma abusiva, Cláudio Monteiro é cético:
“Não sei até que ponto podemos falar em ‘enfrentar uma tentação’. (…) Trata-se de um ato premeditado com um objetivo muito claro. Tudo isto é uma questão de ética, de boa conduta e de bom senso.”
É o falhanço dessa ética que, no seu entender, alimenta a desconfiança generalizada. “Infelizmente, nos dias que correm, parece que o objetivo se centra mais em denegrir e atacar o adversário, do que propriamente em defender as suas ideias”, lamenta.
O maior perigo, contudo, pode vir de fora. Questionado sobre se a soberania do processo democrático português está em risco face a atores externos, Cláudio Monteiro é direto:
“Sinceramente, sim. Aquilo que conhecemos como democracia, liberdade e transparência têm sofrido alguns ataques. A liberdade de pensamento dos cidadãos acaba por ser manipulada e moldada
por estes magnatas milionários, que atuam na sombra, que se aproveitam do descontentamento, da revolta e da discórdia, para gerar lucro. (…) Quase como se em vez de um ditador tivéssemos vários a atuar em simultâneo”.
Para Monteiro, a utilização da IA para disseminar desinformação não é apenas uma ferramenta de campanha; é um mecanismo de “doutrinação disfarçada” que “coloca em risco a soberania do processo democrático”.
A Alma Pode Ser Assistida?


No final do dia, depois da política, da economia e do mundo académico , o debate sobre a IA desagua na questão mais íntima: a da criação. O mercado literário português, de dimensão reduzida, enfrenta uma ameaça existencial. A nível global, a batalha é judicial: autores como George R.R. Martin e John Grisham processam a OpenAI em milhões, acusando-a de “roubo em larga escala” por usar as suas obras para treino sem permissão.
Em Portugal, a luta é mais silenciosa. A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) pressionam por mecanismos de remuneração justos no AI Act. Mas, enquanto a regulação não chega, a capacidade da IA de gerar romances a custo zero e publicá-los em massa na Amazon ameaça “afogar” os autores nacionais.
É neste cenário de pirataria massiva e saturação de mercado que o criador se questiona: usar a ferramenta é render-se ao inimigo? O escritor Pedro Inocêncio, autor de várias obras de sucesso,
debateu-se com a questão. Sendo “um escritor habituado a escrever sem ajudas”, confessa que a integração não foi imediata. A sua experiência, no entanto, revela um caminho de resistência:
“No romance que estou a finalizar tive a curiosidade de experimentar. O resultado não podia ter sido mais positivo. É a minha escrita, são os meus textos, é a minha criatividade, são os meus enredos e são as minhas personagens. A IA revelou-se uma ajuda fundamental na revisão dos textos em bruto e nas sugestões de fluidez de alguns parágrafos mais descritivos.
No meu caso, a minha autenticidade continua intacta. O perigo é talvez maior para quem nunca editou. A tentação de procurar que a IA faça o trabalho do escritor pode ser grande.”
O Espelho Incómodo da Nossa Revolução


A reflexão final sobre a Inteligência Artificial em Portugal é, inevitavelmente, desconfortável. Os dados pintam um quadro de profunda esquizofrenia. Por um lado, somos seduzidos por uma narrativa de progresso imparável: estudos prometem um acréscimo de 18 a 22 mil milhões de euros ao PIB, e 94% das empresas que mergulharam na IA reportam aumentos de receita na ordem dos 30%. O Governo investe 5,5 milhões de euros do PRR no “Amália”, um estandarte de soberania digital, e a “AI Portugal 2030” traça um caminho de inovação.
Mas a realidade no terreno, fora dos centros de investigação e das startups de Lisboa e Porto, conta uma história diferente. A propaganda choca de frente com os dados do Eurostat de janeiro de 2025, que revelam que apenas 8,63% das empresas portuguesas utilizam IA. Este número não é um atraso; é um
alarme. Mostra um fosso abissal entre o discurso e a prática, onde o nosso tecido empresarial, composto esmagadoramente por PMEs (78% do emprego), está a ser deixado para trás, incapaz de acompanhar o investimento ou de encontrar as competências necessárias.
Enquanto a nossa estratégia nacional se foca obsessivamente na promoção económica, a Fundação Francisco Manuel dos Santos adverte para uma bomba-relógio social. A conclusão de que 28,8%
dos empregos em Portugal correm “sérios riscos” de colapso não é uma estatística; é um prenúncio. Não falamos de uma mera “requalificação”, mas de uma reestruturação social massiva para a
qual não existe qualquer plano visível.
E o nosso escudo? O aclamado “AI Act” europeu. Na teoria, uma fortaleza. Na prática, uma rede de malha larga. Ao depender de “autoavaliações” feitas pelas próprias empresas para sistemas de “alto risco” — como os que decidem quem é contratado ou quem recebe apoio social — a lei abdica da sua função de vigilância em favor da burocracia. Em Portugal, com a ANACOM designada tardiamente como entidade fiscalizadora, a ideia de um controlo robusto parece, no imediato, uma ilusão.
A Inteligência Artificial revela-se, assim, um espelho implacável. Reflete a nossa ânsia de inovação, mas também a nossa “perigosa deriva económica”, como alertou João Fernando Velez Vinagre. Reflete a erosão do discurso ético na política, como teme Cláudio Monteiro.
Num país onde 61% dos cidadãos (um valor acima da média europeia) confiam no impacto positivo da IA, mas onde a esmagadora maioria das empresas ainda nem começou a transição, a disparidade entre a fé e a realidade é perigosa.
Deixámos a porta aberta, esperando um milagre económico, sem verificar quem, ou o quê, estava realmente a entrar.
A batalha final não é entre o humano e a máquina. É entre uma visão de futuro cego e otimista, e a realidade crua de um país que arrisca automatizar a sua economia sem proteger a sua sociedade.
O “trigo” e o “joio” de que falava João Fernando Velez Vinagre não são fáceis de separar, e neste momento, parecemos estar a colher ambos indiscriminadamente, esperando que o resultado final seja,
de alguma forma, nutritivo.
José Martins – Jornalista
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