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15 Dezembro, 2022

“Foi um Demónio que Desceu à Terra” em Campo Maior

Campo Maior mostra que as mãos que delicadamente fazem Flores de Papel são as mesmas que mergulham na lama, arrastam e limpam destroços, na certeza que vão voltar a dar cor e vida, onde a água só deixou destruição e desespero.

“Foi  um demónio desceu à terra” pragueja Carlos Vinagre, por entre os escombros de uma casa outrora recheada “com tudo do bom e do melhor” e que agora “é apenas paredes enlameadas até ao teto”. 

Na madrugada de dia 13 de dezembro, por sorte, Carlos não estava em casa. O trabalho levou-o a pernoitar no Algarve. A notícia das tremendas cheias que haviam entrado de rompante no Largo da Alagoa, onde tem a sua casa, chegaram-lhe por telefone. 

“Só tenho paredes. Não tenho mais nada. Era o trabalho de uma vida que estava aqui”, lamenta, ao observar em lágrimas uma casa cujo chão foi desventrado pela fúria das águas. 

Teolinda Latoeiro ajuda o vizinho Carlos nas limpezas, mas a aflição que viveu da madrugada de dia 13, jamais sairá da sua memória. 

Também ela perdeu tudo. Tem a casa despojada de qualquer mobília ou conforto. Apenas o esqueleto da cama ali permanece.

“Se o vizinho não me apanhasse, ficava aqui”

Naquela noite, era uma das poucas pessoas que dormia no rés-do-chão daquela zona baixa da vila.

Emocionada, Teolinda recorda que “por volta das seis da manhã” pressentiu a entrada de água em casa, anunciada pelas fortes bátegas que ouvia  vindas lá de fora.

Levantou-se da cama e ainda abriu a porta da rua, no Largo da Alagoa. 

O cenário que vislumbrou foi assombroso. Diz que gritou por socorro, numa tentativa desesperada por ajuda e salvação. Mas a violência da água não permitiu esperar por auxílio ou resposta humana: “Só a raiva do demónio se ouvia”, descreve.

Apressou-se a fechar a porta, numa tentativa infrutífera de evitar que a água lhe entrasse casa dentro. Correu para a zona oposta da rua em direção ao quintal e galgou “como pude pelas escadas para o primeiro andar do vizinho de cima”, em pranto.

“Se o vizinho não me apanhasse, ficava aqui”, conta-nos ainda num misto de incredulidade e espanto. 

Passaram três dias após a tragédia que assolou Campo Maior. Mas os relatos ainda são arrancados das entranhas com comoção, choque e perplexidade. 

O sobressalto das cheias em Campo Maior leva os habitantes a recuarem ao passado “cerca de trinta a trinta e cinco anos”. 

“Mas nessa altura, nem de perto foi como agora”, desabafam os habitantes em conversas de rua ainda atónicos com o sucedido. 

Em casa da Teolinda a água “subiu até ao teto”. Ficou sem nada e recebe de braços abertos “toda a ajuda” que lhe possam dar: roupa, mobília, utensílios de casa. Tudo, tudo ficou perdido. Tudo, tudo é benvindo. 

Mas o povo de Campo Maior é resiliente e, mais uma vez, revela que efetivamente é Maior que qualquer dilúvio que os céus mandaram naquela noite e madrugada de 13 de dezembro. 

Rapidamente, homens e mulheres, arregaçaram as mangas e continuam a ajudar os afetados “por esta desgraça”. 

Também o Município de Campo Maior disponibilizou todos os meios para a limpeza do caos. 

“O Presidente da Câmara de Campo Maior e os vereadores estiveram aqui desde o primeiro momento. Estiveram aqui a trabalhar todo o dia. Foram excelentes amigos”, refere-nos Carlos Vinagre. 

É numa garagem que vamos encontrar Idália Catalão. Era nesta garagem que Idália guardava todos os pertences da família. Desnorteada, mexe e remexe os seus haveres, sem saber bem por onde começar este trabalho hercúleo.

As mãos lamacentas são o espelho da sua alma. 

Naquela garagem não vivia ninguém, os bens perdidos não eram de primeira necessidade, mas eram memórias de uma vida. E não são igualmente importantes?

Bráulia é campomaiorense de nascença. Vive no Montijo e tinha acabado de recuperar a casa de família. Olha assombrada para a devastação que a água e depois a lama deixaram.

No quarto resta a armação da cama que a viu nascer e aos seus filhos. 

“Os deuses não estavam cá nesta noite”

“Os deuses não estavam cá nesta noite”, solta baixinho Bráulia, ao mesmo tempo que apanha do chão a imagem de Nossa Senhora de Fátima enlameada. 

A intempérie que assolou a vila não deixou Bráulia “estrear” a casa renovada. Os eletrodomésticos ainda plastificados ficaram “estragados antes de serem usados”. 

A vila de Campo Maior tem como lema “Onde tudo se faz flor”. O que ali se passou na madrugada de dia 13, não teve magia, beleza ou encanto, pelo contrário, foi um inferno que fez descer à terra a fúria “do demónio”, como descrevem os habitantes do Largo Alagoa.

Mas Campo Maior mostra mais uma vez, ao Alentejo, ao país e ao Mundo, que as mãos que delicadamente fazem Flores de Papel são as mesmas que mergulham na lama, arrastam e limpam destroços, na certeza que vão voltar a dar cor e vida, onde a água só deixou destruição e desespero. 

Ana Isabel Martins

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