“Foi um demónio desceu à terra” pragueja Carlos Vinagre, por entre os escombros de uma casa outrora recheada “com tudo do bom e do melhor” e que agora “é apenas paredes enlameadas até ao teto”.


Na madrugada de dia 13 de dezembro, por sorte, Carlos não estava em casa. O trabalho levou-o a pernoitar no Algarve. A notÃcia das tremendas cheias que haviam entrado de rompante no Largo da Alagoa, onde tem a sua casa, chegaram-lhe por telefone.


“Só tenho paredes. Não tenho mais nada. Era o trabalho de uma vida que estava aqui”, lamenta, ao observar em lágrimas uma casa cujo chão foi desventrado pela fúria das águas.




Teolinda Latoeiro ajuda o vizinho Carlos nas limpezas, mas a aflição que viveu da madrugada de dia 13, jamais sairá da sua memória.
Também ela perdeu tudo. Tem a casa despojada de qualquer mobÃlia ou conforto. Apenas o esqueleto da cama ali permanece.
“Se o vizinho não me apanhasse, ficava aqui”


Naquela noite, era uma das poucas pessoas que dormia no rés-do-chão daquela zona baixa da vila.
Emocionada, Teolinda recorda que “por volta das seis da manhã” pressentiu a entrada de água em casa, anunciada pelas fortes bátegas que ouvia vindas lá de fora.
Levantou-se da cama e ainda abriu a porta da rua, no Largo da Alagoa.
O cenário que vislumbrou foi assombroso. Diz que gritou por socorro, numa tentativa desesperada por ajuda e salvação. Mas a violência da água não permitiu esperar por auxÃlio ou resposta humana: “Só a raiva do demónio se ouvia”, descreve.
Apressou-se a fechar a porta, numa tentativa infrutÃfera de evitar que a água lhe entrasse casa dentro. Correu para a zona oposta da rua em direção ao quintal e galgou “como pude pelas escadas para o primeiro andar do vizinho de cima”, em pranto.
“Se o vizinho não me apanhasse, ficava aqui”, conta-nos ainda num misto de incredulidade e espanto.


Passaram três dias após a tragédia que assolou Campo Maior. Mas os relatos ainda são arrancados das entranhas com comoção, choque e perplexidade.
O sobressalto das cheias em Campo Maior leva os habitantes a recuarem ao passado “cerca de trinta a trinta e cinco anos”.
“Mas nessa altura, nem de perto foi como agora”, desabafam os habitantes em conversas de rua ainda atónicos com o sucedido.


Em casa da Teolinda a água “subiu até ao teto”. Ficou sem nada e recebe de braços abertos “toda a ajuda” que lhe possam dar: roupa, mobÃlia, utensÃlios de casa. Tudo, tudo ficou perdido. Tudo, tudo é benvindo.
Mas o povo de Campo Maior é resiliente e, mais uma vez, revela que efetivamente é Maior que qualquer dilúvio que os céus mandaram naquela noite e madrugada de 13 de dezembro.


Rapidamente, homens e mulheres, arregaçaram as mangas e continuam a ajudar os afetados “por esta desgraça”.
Também o MunicÃpio de Campo Maior disponibilizou todos os meios para a limpeza do caos.
“O Presidente da Câmara de Campo Maior e os vereadores estiveram aqui desde o primeiro momento. Estiveram aqui a trabalhar todo o dia. Foram excelentes amigos”, refere-nos Carlos Vinagre.


É numa garagem que vamos encontrar Idália Catalão. Era nesta garagem que Idália guardava todos os pertences da famÃlia. Desnorteada, mexe e remexe os seus haveres, sem saber bem por onde começar este trabalho hercúleo.


As mãos lamacentas são o espelho da sua alma.
Naquela garagem não vivia ninguém, os bens perdidos não eram de primeira necessidade, mas eram memórias de uma vida. E não são igualmente importantes?




Bráulia é campomaiorense de nascença. Vive no Montijo e tinha acabado de recuperar a casa de famÃlia. Olha assombrada para a devastação que a água e depois a lama deixaram.
No quarto resta a armação da cama que a viu nascer e aos seus filhos.
“Os deuses não estavam cá nesta noite”


“Os deuses não estavam cá nesta noite”, solta baixinho Bráulia, ao mesmo tempo que apanha do chão a imagem de Nossa Senhora de Fátima enlameada.




A intempérie que assolou a vila não deixou Bráulia “estrear” a casa renovada. Os eletrodomésticos ainda plastificados ficaram “estragados antes de serem usados”.




A vila de Campo Maior tem como lema “Onde tudo se faz flor”. O que ali se passou na madrugada de dia 13, não teve magia, beleza ou encanto, pelo contrário, foi um inferno que fez descer à terra a fúria “do demónio”, como descrevem os habitantes do Largo Alagoa.
Mas Campo Maior mostra mais uma vez, ao Alentejo, ao paÃs e ao Mundo, que as mãos que delicadamente fazem Flores de Papel são as mesmas que mergulham na lama, arrastam e limpam destroços, na certeza que vão voltar a dar cor e vida, onde a água só deixou destruição e desespero.Â
Ana Isabel Martins











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