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24 Julho, 2024

Empatia: Não somos todos iguais

José Martins faz uma partilha desconcertante na primeira edição da rúbrica Empatia. Uma história real contada na primeira pessoa.

Começo este texto por confessar que estou frustrado com a realidade à minha volta, apesar de estar a finalizar a licenciatura e com um novo livro a caminho.
Nunca estive tão insatisfeito com a minha vida. Insatisfeito é a palavra mais leve para definir aquilo que sinto.

Bem sei que era para estar feliz por variadíssimos motivos: estou a finalizar a licenciatura, em principio irei começar a trabalhar, mas, uma coisa é olhar de fora, outra é olhar e sentir de dentro. E cá dentro as coisas não estão bem.

A minha alma quebrou como um copo que cai no chão e fica desfeito em mil pedaços.

As expetativas que existiam foram desfeitas e o desejo de uma nova realidade onde tudo seria diferente, não passou de uma miragem, de uma mera ilusão de ótica.
Na verdade, tudo está igual, a única coisa que mudou foi a obtenção de um certificado que diz que sou licenciado.

Nasci na cidade de Évora, em 1993, os meus pais são de origem cigana. Naquela altura, há trinta anos, era impensável um casal de etnia cigana ter um filho com deficiência.  Era uma vergonha junto da comunidade a que pertencem.

Não sei exatamente o que aconteceu durante os meus primeiros anos de vida. Sei que passei por uma família de acolhimento que mal tratava as crianças a seu cuidado.

Só tive noção da minha existência aos oito anos de idade, estando na altura a viver numa instituição do estado, que albergava todo o tipo de pessoas com deficiência, seja física ou mental.

Não foi fácil para mim, enquanto criança, crescer num meio onde vivem pessoas a babar-se e a bater com a cabeça na parede.

A sensação que tenho é que para o Estado português não importa se a pessoa têm uma deficiência física ou mental. Ficávamos todos juntos e depois logo se via.

Desde cedo percebi que as pessoas com deficiência são a minoria mais mal tratada do país, a mais discriminada pela sociedade, pelo Estado e também pela comunicação social. 

A  ideia que existe em Portugal é que ter uma deficiência é sinal de invalidez e inaptidão.

Atentem que toda a discussão pública que é feita em Portugal, em relação às pessoas com deficiência, assenta na sobrevivência, como se fossemos doentes terminais à espera de falecer.

Desde que iniciei o meu percurso de independência, só oiço apenas uma frase:

– “Deixa-te disso da independência, não estás bem com a reforma de invalidez que ganhas?”, questionam.

A sensação que tenho é que para a sociedade eu deveria de estar grato por sobreviver, desde que tenha comida e uma cama. 

A realização pessoal e o direito a viver não fazem parte da equação. Sou diferente e ser diferente é um problema na sociedade em que vivemos.

Ainda assim, ouvindo tudo isto, arrendei uma casa, arranjei emprego e fui tirar a licenciatura, mas nunca é suficiente para conquistar o respeito da sociedade, porque, irá sempre existir o julgamento moral da praça pública.

“Nunca sou bom o suficiente” e o pior é que absorvo toda essa negatividade que faz com que nunca atinja os objetivos por amor próprio, mas sim para mostrar aos outros que sou capaz. E isto acaba por ser um ciclo que nunca acaba.

Porque é que não sou um exemplo? As pessoas que vingam na vida tendo limitações físicas, vivem bem com elas próprias, aceitam as suas características físicas e aceitam a sua realidade. 

Já eu não me conformo. Nunca aceitei a minha deficiência física e acho extremamente injusto ter esta limitação que me condiciona em tudo.

Acho cruel ter nascido numa família disfuncional com mentalidade do século 17, onde as mulheres são vistas como seres inferiores e obrigadas a casar à margem da lei.

Acho injusto ter que passar por coisas inimagináveis para ter o direito a licenciar-me: Passar fome durante semanas inteiras, em Portalegre, onde só tinha acesso a uma refeição completa por dia. 
No último ano tive de desistir do alojamento local, sendo obrigado a ir e vir todos os dias de Elvas para Portalegre e vice versa, acordando todos os dias às cinco da manhã para apanhar o autocarro às sete e chegar a casa às oito da noite.
Havia noites em que mal conseguia descansar , pois não queria correr o risco de me deixar dormir para não perder o autocarro. Havia alturas em que o meu corpo cedia e tinha de ir parar às urgências com o coração acelerado, com fraqueza e com falta de descanso.
Sim, é verdade que para conseguirmos as coisas temos que fazer sacrifícios, mas uma coisa são sacrifícios, outra é colocar em causa a nossa saúde física e psicológica por um objetivo.

Por tudo isto, a frase “somos todos iguais e todos temos os mesmos direitos “é apenas uma bonita junção de palavras.

A verdade é que não existe igualdade entre cidadãos. Quem não têm posses não estuda, quem nasce num bairro social acaba por ter o seu futuro incerto, e provavelmente penhorado, pela falta de oportunidades. Quem nasce com uma deficiência física é alvo de preconceito.

E este é o país em que vivemos, um país de aparências, onde todos usamos a máscara da simpatia, onde todos queremos ser boas pessoas atrás de uma câmara de smartphone, onde todos gritamos igualdade, mas quando o show acaba e câmara se desliga voltamos a ser egoístas, só queremos saber do nosso umbigo e acima de tudo odiamos o sucesso do outro.

José Martins

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