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20 Março, 2023

“A Intensidade de Viver” por Carlos Pepê

Numa viagem pelas suas memórias de infância, Carlos Pepê lembra os aromas, os costumes e as vivências de Campo Maior. Uma vila, cujos habitantes foram tocados por um homem singular: Rui Nabeiro.

As minhas memórias de infância navegam entre sentidos despertos pela riqueza sensorial da nossa vila branca e florida de Campo Maior. Nos anos 80 Campo Maior era uma vila intensa, onde as ruas eram os nossos parques de diversão e um qualquer campo ou eira servia para duelos intermináveis de futebol. O tempo tinha um ritmo diferente dos dias de hoje! Na rua onde nasci, bem ao fundo, existia a fábrica do Anis, que adoçava o ar. Entre o cheiro do Anis e os campos silvestres existam semelhanças que vim descobrir mais tarde tratar-se do aroma do funcho por entre o qual corríamos!

A vila era um frenesim, de que hoje tenho saudades. As mulheres passavam o tempo em conversas na rua ou escondidas entre as meias portas das casas. A minha mãe era modista, o que tornava a minha casa uma espécie de escola para outras raparigas aprenderem a arte. Cresci entre mestres e maestrinas, não de música, mas de ofícios. Um avô sapateiro, uma avó cozinheira, uma mãe modista e costureira e um pai mestre de mecânica. Também aqui os sentidos estavam sempre alerta e bem despertos, não fossem constantemente inundados por aromas intensos que navegavam pela vila ao sabor do vento. Umas vezes vinha o cheiro do Anis do fundo da rua, outras vezes o cheiro intenso das adegas de vinho ou dos lagares de Azeite. Mas o que mais me ficava retido nas narinas era um cheiro diferente a caramelo torrado. O cheiro a café torrado com notas de alfarroba da Torrefação Camelo não enganava ninguém. O mistério das Flores coloridas que, de tempos a tempos inundavam as ruas da vila fazia-me sentido em Campo Maior, a tal terra que despertava os sentidos! Noite após noite as famílias da rua dos meus pais juntavam-se em festa para pensar e criar a mais bela rua florida do mundo. O segredo era a alma das festas, e como criança que era, levava a ideia a preceito. Era uma espécie de caça ao tesouro dos meus amigos das outras ruas!

O meu pai, um homem também ele intenso carregava as memórias da guerra colonial ao mesmo tempo que canalizava toda a sua energia para o seu enorme talento para a mecânica. A oficina da Delta (da qual o meu pai era responsável) era um lugar mágico, onde os camiões enormes pareciam gigantes de boca aberta que queriam engolir o meu pai e os rapazes que com ele trabalhavam e aprendiam. Também o meu pai criava a sua própria equipa de artesãos, neste caso da mecânica. Entre um jogo de futebol mesmo ao lado da oficina no “Jardim das viúvas” e uma visita à oficina, cresci como rapaz. O cheiro do óleo, dos lubrificantes, dos pneus gigantes dos camiões e do combustível, criava ainda mais conflitos sensoriais numa vila onde tudo era intenso!

Rui Nabeiro e Carlos Pepê

Cresci com a omnipresença do Senhor Rui Nabeiro. O tempo com o meu pai era sempre pouco, uma vez que os camiões o levavam a percorrer Portugal. As noites eram interrompidas pelo batente da porta ou o toque agudo do telefone lá de casa, para chamar o mestre para mais uma missão de salvamento (estilo guerra colonial) dum camião em apuros! A dedicação, respeito e admiração pela empresa era inegável e eu, mesmo criança, já percebia que a cumplicidade entre o mestre e o patrão era mais que números ao final do mês. Cresci com a ideia de que o senhor Rui não era só patrão do meu pai, mas sim um amigo. Fiquei com a certeza disto no dia em que a minha mãe foi operada e pela porta lá de casa entrou uma figura de bigode alta e imponente que era familiar da oficina. A preocupação que sentia pelo estado de saúde da minha mãe e a disponibilidade para ajudar ficou guardada na minha memória. Eram homens amigos, muito próximos e cúmplices. Na oficina, muitas vezes escondido com a bicicleta e o cão, sentia a presença do senhor Rui e tentava não ser visto, pois ali era um sítio de trabalho, mas também era mais uma parte da “minha casa”. Num verão, chegou uma surpresa…íamos viajar de avião até à Ilha da Madeira. Que aventura aquela! Nunca tinha viajado de avião e maior foi a surpresa quando descobri que não iria só com os meus pais, mas com toda a grande família da Delta. O senhor Rui era o “comandante” do avião onde as famílias dos seus colaboradores e amigos seguiam todas juntas para as merecidas e inesperadas férias. Nunca mais me esqueci da alegria e felicidade do nosso piloto ao longo daqueles dias, a sua proximidade e atenção a todos.

Viagem à Madeira: Carlos Pepê (com o crachá da marca Delta) e a mãe

O tempo passou e a memória da infância tornava-se certeza que alimentava um sentido de pertença. As viagens da família Delta sempre com o seu piloto a bordo deixaram raízes.

Mas nem sempre os tempos eram fáceis e as noites continuavam agitadas e pegavam com os dias de trabalho. As viagens a Espanha, onde vivia agora o Senhor Rui, levavam o meu pai a sair horas a fio e a regressar mais tarde! As perguntas estavam proibidas pois o meu pai era uma espécie de cofre ambulante. Dava para sentir o peso da carga aos seus ombros e a tarefa urgente e importante que lhe tocava. Habituado às missões da guerra colonial esta era mais uma missão importante.

O dia especial chegou! Ainda criança, fui arrastado pela multidão para dentro de um dos gigantes camiões que bem conhecia. Centenas de pessoas amontoadas viajámos até á fronteira do Caia onde esperámos pelo regresso do “nosso comandante”. Que momento épico aquele! Foi mais uma vez intenso (como os aromas da vila). Talvez esta intensidade de viver, de sentir que fazemos parte de algo maior, me tenha ajudado a perceber a importância da amizade, da cumplicidade, da proximidade e da ambição.  Obrigado, Senhor Rui.

20 de Janeiro de 2023

Carlos Pepê

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