Carlos RodriguesOpinião
30 Junho, 2016

A Casa Vazia

Nasceu ai o meu gosto pelo escuro, pela tristeza bela, pela contemplação prolongada da desgraça, pela procura incessante da nostalgia, digna da contraposição ou da complementaridade com a felicidade.

Chovia uma fúria de água acompanhada de relampejos, gritos enfurecidos dos deuses, que alumiavam a estrada e a inundavam em direção ao Tejo. Aquela chuva quente era uma manifestação de raiva, mais, era o mote para uma inspiração libertina que eu compreenderia mais tarde. Chegado a casa, a casa agora vazia, ensopado de ideias transparentes, pernoitava com um qualquer candeeiro a petróleo que fazia dançar sombras nas paredes desgastadas.

Não havia televisão, nem nada que mais me aquecesse para além do frio das paredes de xisto, dos quartos com camas baixas e da solidão acompanhada do escuro persistentemente presente, atroz e poético. Nasceu ai o meu gosto pelo escuro, pela tristeza bela, pela contemplação prolongada da desgraça, pela procura incessante da nostalgia, digna da contraposição ou da complementaridade com a felicidade.

A casa agora vazia, não se regulava por qualquer hemisfério, tinha antes um relógio estrutural só seu – diria que eram quase sempre 3 da tarde – aquela hora de silêncio em que os corpos dormiam, fartos e inúteis, satisfeitos com o vinho e as migas do almoço. Era o momento em que o  vazio vagueava pela casa e parava defronte dos retratos onde sorriam pessoas que já não eram, vestidas de cores berrantes e semblantes felizes. O tempo só nos visitava quando, de hora a hora, soavam os sinos da igreja – aquela igreja pobre onde se perdiam os fiéis que assumiam a culpa, enquanto se lembravam da tempestade do final do dia anterior.

Eu contava o número de badaladas enquanto o meu pensamento se dividia em direção aos degraus pintados com cal que levavam ao sótão – o sótão onde habitavam criaturas que jamais conheci. Nunca me foi permitido transpor aquela porta – Nem teria coragem! Acredito que lá habitasse quase tudo o que em mim habita hoje, mas nunca o saberei.

As 7 da tarde levantaram um cheiro a terra molhada e um sol decadente que rompera as nuvens grossas do dia anterior. Agora, viúvas e vizinhas confraternizam sentadas à porta numa cadeira cujo assento de palha, sustinha o peso pesado de uma vida conformada, de uma coscuvilhice alheia ou de um credo uníssono.

A noite caiu, as cadeiras foram recolhidas, as orações não ficaram por dizer e os pescadores navegaram pela noite dentro em busca de sustento para as suas famílias.

 Depois a casa ficou vazia – recordo-a até hoje com uma tristeza inspiradora.

 O Tejo ainda lá está.

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