A minha obra gira em torno de um crime hediondo. Um homem aparentemente comum regressa a casa e assassina, a sangue-frio, a sua mulher e os dois filhos recém-nascidos. Sem hesitação. Sem qualquer sombra de arrependimento. Desde o inÃcio, o leitor sabe quem cometeu o crime — o mistério não está em descobrir o culpado, mas sim em compreender a motivação. A grande interrogação que atravessa o livro é esta: o que pode levar alguém, que tem uma vida dita normal, a cometer um ato tão cruel?
Este não é um livro sobre a investigação de um crime, mas sim uma viagem perturbadora ao interior da mente do assassino — que sou eu mesmo.
Ao longo da narrativa, surgem outras camadas, outras tensões: a forma como a comunicação social explora casos mediáticos com um sensacionalismo agressivo, muitas vezes ultrapassando os limites da ética jornalÃstica; o julgamento social imediato e violento perante um caso de assassinato brutal, especialmente quando envolve violência extrema; e, talvez mais importante, o modo como o sistema judicial encara indivÃduos que padecem de perturbações mentais como a psicopatia ou a sociopatia.
Esta obra não procura agradar. Não tenta ser politicamente correta. Também não responde à eterna pergunta sobre quem está certo ou errado. Limita-se a apresentar uma realidade crua e desconfortável: a da doença mental e das suas consequências. A pergunta que deixo em aberto é esta: quem sofre de uma perturbação profunda, como a psicopatia, será apenas um monstro… ou será também uma vÃtima da sua própria mente?
Escrevi este livro num perÃodo de profunda dor pessoal. Estava a viver uma depressão silenciosa, escondida do mundo. A escrita foi o meu processo de catarse, uma tentativa de extravasar aquilo que não conseguia dizer em voz alta — a angústia, o sofrimento, o vazio.
Sim, a narrativa cruza-se com a realidade. É evidente que a personagem principal sou eu. Ao longo do livro, projectei a minha escuridão interior. Todos temos múltiplas camadas, e as minhas são claras para mim: há um lado vulnerável, ferido, que sofre profundamente; e há um lado sombrio, frio, marcado pela raiva e pela ausência de empatia.
É difÃcil encontrar equilÃbrio entre estes dois lados — e ambos estão presentes no livro. Se é certo que a faceta sombria domina grande parte dos capÃtulos, o lado humano e emocional surge com mais força nos três capÃtulos finais, que foram reescritos recentemente.
O meu processo de escrita não é planeado nem técnico. É espontâneo, instintivo. Não sigo um guião. Funciono como um pintor que tem uma ideia vaga e vai dando forma ao quadro à medida que pinta. O que surge é honesto, visceral, quase inevitável.
Entre as personagens secundárias, houve algumas que me surpreenderam. Tenho uma ligação especial à Adriana — revejo-me na sua vulnerabilidade e na sua revolta interna. O João fascinou-me pela sua ambição desmedida e loucura progressiva. E o padre Gabriel, uma adição tardia na fase de reescrita, tornou-se um dos meus favoritos. Ele representa a hipocrisia institucional da Igreja, mas fá-lo com um humor negro desconcertante. É cruel, perverso e, curiosamente, muito divertido.
A verdade é que a obra tem sido mal interpretada por causa do último capÃtulo. Nele, a personagem principal retira a própria vida — e esse final gerou tensão com a editora. Para mim, era essencial que fosse cru, real, emocionalmente devastador. Há uma fronteira perigosa entre ficção e realidade, e eu decidi atravessá-la.
A reescrita do penúltimo e último capÃtulos foi uma decisão difÃcil, mas necessária. O último capÃtulo representa o meu lado mais vulnerável. A personagem, como eu na altura, está à beira do colapso, farta da vida, exausta da dor. A sua morte não é apenas um desfecho trágico — é uma tentativa de sepultar o lado negro que a consome. E mais do que isso, quis que o leitor sentisse. Sentisse a minha dor, a minha solidão, a minha angústia.
Ao longo da trama, há uma transição clara: a personagem começa como um monstro, um vilão sem remorsos. Mas, aos poucos, o leitor é convidado a olhar mais de perto, a questionar, a perceber que talvez este homem seja apenas uma vÃtima da própria mente.
No fim, o leitor é confrontado com uma escolha: José é vilão? É vÃtima? Ou é ambos? Ou nenhum?
A vida não é uma divisão entre bons e maus. Não há um lado da luz e outro das trevas. Somos todos seres humanos, com falhas, cicatrizes, impulsos, emoções descontroladas e feridas que não se veem. E, por vezes, essas feridas moldam tudo o que somos — até ao ponto em que já não conseguimos reconhecer-nos.
José Martins
There are no comments for this post yet.
Be the first to comment. Click here.